uma visita

O dia acordou abafado. Essa mudança climática de Campinas vai acabar comigo. Fui para o CAPS e minha programação do dia era realizar uma visita domiciliar em um bairro periférico da cidade. Ao chegar, tomo um cafezinho amargo da cafeteira do serviço (que por sinal, é muito gostoso, ainda mais para meu paladar que está acostumado a ingerir até café amanhecido de hospital).

Bom, esperei o transporte da prefeitura chegar para nos levar até o local. E lá fomos, eu e uma terapeuta ocupacional do serviço, que é a profissional de referência do paciente que iriamos visitar. Eu sabia que era um bairro longe, mas não imaginei que era tanto. Demorou e demorou. Daí demorou um pouco mais. Fiquei pensando: “caramba, se estamos demorando esse tanto de carro, os pacientes desse bairro devem demorar horrores para acessar ao CAPS de ônibus”.

Ao chegar em uma ruela que fazia divisa com uma rodovia, seguimos até cair numa rua sem saída e viramos à esquerda. Era uma ladeira, haviam várias construções inacabadas, uma vendinha com a placa de papelão anunciando ‘salgados e refrigerantes’. Haviam várias crianças (contei umas 9) de idades variando entre 6 a 15 anos, sentadas no chão aglomeradas, umas com “xup-xup” na mão, outras tentavam empinar uma pipa. Todas olharam o carro chegando com olhares desconfiados. Descemos e perguntamos se o paciente ou a sua mãe estavam em casa. Um dos pequenos disse: “não tia, ela tá lá na casa de ciclana lavando roupa, vem que te levo lá”. O garoto em questão aparentava ter no máximo 7 anos, vestia uma camisa do Rogério Ceni e luvas de goleiro, me parecia esperto demais para uma idade tão jovem e logo saiu arrastando seu chinelo pelo asfalto nos guiando.

Cerca de 20 passos, encontramos a mãe do paciente já vindo ao nosso encontro de mãos dadas com uma criança de uns 3 anos. “Avistei vocês passando de carro, imaginei que iam lá pra casa”. Pois sim, comunicamos que viemos ver seu filho. Mas chegamos tarde demais, ele já havia saído para as ruas. Sua mãe conta, em meio aos prantos, que a situação está insustentável. Seu filho, o L., sai pela manhã e volta só à noite e enquanto está em casa passa a maior parte do tempo no quarto, deitado embaixo de cobertas, sem conversar com ninguém. Às vezes, de madrugada sua mãe escuta ele bater seu corpo contra parede, às vezes rindo sozinho. Ela não dorme, diz ter medo. Conta que está vivendo por um fio, sob um enorme estresse, fadiga e angústia. Abriu a vendinha (onde a criançada está escorada ‘tomando conta’) há alguns meses, no intuito de conseguir uma renda, já que não consegue sair para procurar emprego. Faz 28 dias que seu filho L. não toma banho, da última vez ficou mais de um mês sem banho e foi preciso chamar a guarda municipal para forçá-lo a entrar no chuveiro. Na ocasião, sua mãe viu sua cueca suja de sangue o que a fez suspeitar que ele esteja se prostituindo para conseguir dinheiro. Como a família está passando por dificuldades financeiras, eles só tem feito uma refeição por dia, mas L. tem roubado alguns mantimentos, além de outras coisas dentro de casa para vender em troca de drogas. Tem faltado comida na mesa. A sua mãe conta que perdeu o controle da situação, não está vendo mais saída, tentou se enforcar duas vezes. Pede ajuda e chora.

Falamos sobre a possibilidade de ver o L., e de um médico solicitar uma internação involuntária devido a gravidade da situação, a exposição à riscos, o adoecimento global da família, a precariedade e vulnerabilidade que envolvem a condição em que o paciente se encontra.

A mãe dele chora mais e diz: “Ai moça, eu estou aceitando tudo, o que fizerem pra me ajudar fico agradecida, porque eu não sei mais o que eu faço. Só acho difícil, viu, afinal que médico vai vir nessa biboca de fim de mundo ver ele?”.

Respondo: “Eu sou médica e vim aqui pra avaliar ele.” Ela se assusta e pede desculpas. Sorrio e digo: “não se preocupa, como ele não está aqui agora eu volto daqui 3 dias e venho mais cedo pra tentar encontrá-lo antes dele sair de casa para usar droga”.

Alívio perpassa o rosto da mãe. Aperto invade meu peito e sinto um nó na boca do estômago. Pergunto: “E a senhora? Tem alguém cuidando de você?”. Ela solta: “me deram diazepam no posto, mas não tá adiantando mais, tô muito triste, só choro”. Explico sobre o uso do diazepam e digo que existem medicações melhores e disponíveis no SUS que podem ajudá-la neste momento, digo que entrarei em contato com alguém do posto para orientar uma sugestão de conduta medicamentosa.

Nos despedimos, entro no carro para voltar ao CAPS. No longo caminho de volta penso em como me sinto impotente, em como gostaria de fazer mais, em como poderia ajudar, em como tão pouco pode fazer tanta diferença na vida de alguém. Nessa noite, durmo mal. Quando voltar lá, daqui 2 dias, conto pra vocês.

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